sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Crônica: Essa paixão que nos consome


Nós, seres humanos, somos movidos por paixões de toda natureza. Elas nos motivam, nos impulsionam, nos levam a lugares inimagináveis... mas podem também ser nossa ruína.


Certa vez assisti a uma ópera bastante interessante: “Carmen”, de Bizet. Não havia sido a primeira vez que a vi, mas me levou a refletir sobre algumas questões que gostaria de compartilhar aqui. A obra, pelo menos para mim, fala da transitoriedade do amor, diante da incapacidade de conviver com o diferente. O soldado da belíssima história, passada no cenário da Guerra Civil Espanhola, apaixonado pela linda cigana, abandona tudo para segui-la. Pobre e inocente paixão, que o consome, a ponto de aceitar uma vida totalmente oposta à que vinha seguindo!
O que leva alguém a se anular totalmente em busca da aceitação do outro? O que o leva a exigir tal anulação daquela pessoa a quem diz amar? Uma vida bandida, como a que a protagonista vive, é completamente oposta à que o infeliz soldado estava acostumado. E mesmo hesitando em princípio, ele acaba abandonando todo o seu mundo, baseado em valores e costumes arraigados há gerações.
Volta-se à velha questão da anulação de um dos parceiros dentro de um relacionamento. Até que ponto vale a pena essa anulação? Ainda teimo em bater na já desgastada tecla da falta de tolerância em qualquer situação de relacionamento. Afinal, é possível, sim, conviver com a diferença e saber respeitá-la.
Outro dia vi um trecho, sem querer, da novela das oito, da Rede Globo (não tenho o hábito de seguir novelas, principalmente da Globo, que possuem o tom apelativo demais). Esse episódio me deixou muito curiosa. Uma das personagens, a “Bibi”, havia abandonado sua vida, da mesma forma que o pobre soldado de Bizet, para viver seu grande amor, em sua “vida bandida”, em uma comunidade do Rio de Janeiro. A novela é cheia de personagens passionais. Curiosidade à parte, fui pesquisar no Google. Que trama! Escrita por Glória Perez. Segundo o próprio site da emissora, o folhetim traz, como tema central, questões como as “escolhas da vida” e diz que “mais difícil que ter coragem para fazer determinadas escolhas na vida é ser resiliente diante das consequências de tais atos”.
Bem verdade isso. Retomo ao pobre soldado de Bizet, apaixonado pela bela cigana. Seu envolvimento me remeteu à “Bibi” de Glória Perez. O que eles têm em comum? Tudo... e ao mesmo tempo nada! Um professor meu me condenava por querer misturar uma obra de arte, como “Carmen”, à cultura popular, mas o que seria da vida sem a arte? E o que seria da arte sem a vida para lhe inspirar?
Retomando Bizet, a cigana não aceitava a vida do soldado, com tantas regras. Sua vida de caserna. Ele entrou no mundo cigano a que fora convidado/forçado por seu grande amor.  O preço a pagar foi muito alto. Anular-se, abandonar seu mundo em prol do outro, em um futuro não muito distante, viria a lhe custar demasiadamente caro. Será que o mesmo não ocorreria a nossa “Bibi”? Um preço caro a pagar por uma escolha tão passional?
É inegável que, quando se ama, deseja-se ficar ao lado do ser amado, compartilhar o máximo de tempo possível e as emoções que vêm junto. Porém, em minha humilde opinião, até para isso existem limites que, se transpostos, podem ser prejudiciais. O que Glória Perez reserva para a nossa “Bibi”?
Na obra de Bizet, o preço foi a morte literal da protagonista (o teatro e seu bom e velho drama...). Na vida real, as consequências podem ser até maiores. Maior que a morte física?... A psicológica talvez – existe coisa pior do que perder a si mesmo?
Por isso, torno a dizer aqui: amar é preciso, sim, mas com consciência e certa dose de racionalismo. Principalmente porque esse sentimento que parecia ser pra vida toda, pode se mostrar frágil demais, capaz de se espatifar ao mais leve abalo sísmico.
Parece difícil de acreditar, mas precisamos aprender a superar esse mundo tão efêmero. Tudo, no fundo, é muito passageiro e estranhamente transitório. Não esqueçamos, todavia, de que tudo muda o tempo todo. Essa é a vida e a beleza de se viver.



sábado, 19 de agosto de 2017

Crônica finalista do concurso SESC 2015

Quem não tem gato... caça com peixe

Essa minha crônica foi uma das finalistas do concurso SESC 2015. Nos traz uma bela história sobre o Haiti, seu povo e sua capacidade de superação! Tenham uma ótima leitura!  


 
A criança possui um dom que se vê muito pouco nos adultos: a capacidade de se adaptar facilmente a situações adversas. Isso talvez se deva ao fato de que sua pureza a faça ver o mundo com outros olhos e sua criatividade transforme as adversidades, por mais difícil que ela nos pareça, em algo um pouco mais lúdico e prazeroso.
Vi isso em um dos piores ambientes que se pode imaginar, em meio ao caos social, à sujeira e à miséria generalizada de um povo que perdeu suas esperanças há muito. Um povo que carrega na face a falta de fé no futuro e no peito a dor da perda de um passado que já foi muito próspero. Refiro-me ao Haiti, país que um dia foi considerado uma das mais ricas colônias das Américas, tendo, inclusive, recebido a alcunha de “Pérola Negra do Caribe”. Isso foi, se não me engano, ocorreu no século XVIII, época em que ainda produzia e exportava a cana de açúcar.
Hoje em dia, dentro desse pedaço de ilha no meio do Caribe, em contraste com paradisíacas praias ao norte, onde gigantescos transatlânticos atracam esbanjando ostentação, luxo e dinheiro, existe a pobreza e a miséria da Capital, Porto Príncipe, e, dentro dela, um bairro chamado Ti-Haiti, que, na essência de seu nome, carrega o peso de ser um “Haiti em miniatura”. E não é à toa que essa tradução faz jus ao nome, não por pertencer a um dos países mais pobres do mundo, que beira a uma guerra civil, mas por ser considerado o bairro mais pobre das Américas.
Em meio a esse cenário, é preciso recorrer à criatividade para superar os desafios que a própria vida impõe. Diz o ditado que quem não tem cão caça com gato, mas quando tampouco se tem um gato, até mesmo com peixe é possível caçar. E não pense que essa é mais uma história de pescador, apesar de envolver pescadores. Esta é uma história real, embora seja muito difícil comprovar os fatos que serão narrados adiante, afinal, foram presenciados por uma testemunha ocular solitária que por ali passava.
Pois bem, sei que estou me alongando em situá-lo, caro leitor, mas é para que não haja dúvidas. Já irei apresentar os acontecimentos, que não deixam de ser extremamente interessantes.
Dentro de Ti-Haiti existe o Porto de Waaf, que, verdade seja dita, está mais para um atracadouro, onde barcos pesqueiros repousam após uma jornada de trabalho, normalmente em alto-mar. A água ali é extremamente poluída, por causa de todos os dejetos humanos e inumanos que desaguam naquela baía. Totalmente imprópria, inclusive para o banho. Porém, isso não impede que as crianças aliviem o peso que o sol sufocante do Caribe lhes causa, tampouco impede a prática da pescaria para os frequentadores que, em geral, são pessoas bastante humildes, na maioria pescadores e crianças, em busca de algo para ajudar no sustendo de casa.
O deque é velho e desgastado e, em muitos lugares, está quebrado, cheio de buracos. As crianças utilizam essas brechas nas tábuas para tentar pescar algum peixinho minúsculo. Não possuem qualquer equipamento, a não ser uma linha de nylon, na qual amarram a isca, normalmente uma minhoca, e, com cuidado, soltam o fio por entre os buracos para dentro do mar, feito uma armadilha. Aos poucos vão pegando alguns peixinhos desavisados, nada muito grande, com no máximo dez centímetros, porém, ainda assim, melhor que qualquer salmão do mundo, fosse ele chileno, do Alasca ou russo.
No entanto, a criatividade vai além. Logo alguns desses minúsculos pescados acabam virando mesmo é isca de um animal muito maior e talvez capaz de sustentar uma família mais numerosa, como a maioria por lá.
O fio de nylon, então, torna-se uma arma e, nele, amarra-se o pequeno peixe-isca. Uma das crianças, com perspicácia e um bom braço, lança o peixe ao ar, como se fosse devolvê-lo para a água, propositalmente na direção das gaivotas que, atiçadas, também buscavam alimentação. Pobre da ave que caiu na arapuca muito bem elaborada pela fértil mente infantil. E abocanhou o peixinho, engolindo-o, sem sequer pensar. Vendo que a armadilha havia funcionado, mais que depressa, o pequeno grupo de garotos agarrou a outra extremidade do nylon e puxou a gaivota, trazendo-a à força para o deque. A ave se debatia e tentava se soltar a todo custo. Os meninos agarraram-lhe as asas, segurando-as firme, não apenas para impedir que o animal fugisse, mas também para provocar as companheiras que sempre vinham em socorro das desavisadas, na tentativa de libertá-las. Engenhosa a estratégia, porque mais bichos cairiam em uma única arapuca armada. Desse modo, em pouco tempo, os garotos possuíam pelo menos mais três prisioneiras, para alegria e satisfação da criançada, que festejou a façanha. E a caça-pescaria já havia se tornado uma brincadeira divertida, de dar água na boca.
Agora, não apenas de peixe passariam aquela semana, para a infelicidade daquelas pobres gaivotas. O instinto de sobrevivência sempre fala mais alto, ajudado pela capacidade de adaptação e a criatividade das crianças. Afinal, o que vale mais: um pássaro na mão ou dois voando? Quem saberia muito bem lhe responder, caríssimo leitor, seriam esses garotos que passam suas tardes no Porto de Waff, em Ti-Haiti, no coração do Caribe.